A partir de hoje nosso Blog terá reportagens e entrevistas sobre o mundo do teatro, novos projetos e parcerias. Quem abre a porteira é o grupo Casa 3, com um balanço dos três anos de estrada com o nosso projeto.
Afinidade é um ingrediente fundamental para que um grupo de teatro dê certo. Se juntarmos a isso talento, dedicação e trabalho social, temos um grande projeto. Esse é o Casa 3, um grupo de Guarujá-SP, que está na estrada com o Teatro a Bordo há três anos. No nosso contêiner-palco eles encenam o espetáculo Cinderela Brasileira, um clássico revisitado com toque nordestino e contemporâneo. Mas o teatro para crianças é apenas uma parte da produção do grupo, criado em 2001. “O infantil é um campo que dá trabalho, porém, começamos a ampliar nossa atuação com o teatro adulto e algumas pesquisas” explica Marcelo Wallez, um dos fundadores, produtor e ator.
Kadu Veríssimo, fundador, ator e diretor artístico dos espetáculos – entre eles Cinderela – é um dos responsáveis pela introdução desses estudos. O resultado foram peças de cunho mais urbano e social, como o Projeto Bispo e o Zona, em parceria com grupos de Santos-SP. A justificativa para ampliar a atuação é simples: “Não tem como fazer teatro sem falar do espaço em que a gente vive”, explica. Ele, Marcelo e os atores Elias Tomais, Thalita Nascimento e Juliana Lima nos receberam no espaço Casa 3 de Artes, uma casa cheia de vida onde há aulas de balé, fotografia, dança de salão, piano, canto e, claro, teatro.
Como transformar um clássico para que não seja “mais do mesmo”?
É importante salientar que fizemos muitas coisas antes do Shrek (risos). Nosso repertório sempre foi sair do lugar comum. Quando contamos a história da Chapeuzinho, por exemplo, o Lobo pintava a história. A nossa Rapunzel é uma adolescente rebelde, que dialoga com essa molecada que só pensa em consumo, em dinheiro, em ostentação. Tentamos recontar os contos, porque eles não se modernizaram, alguns são até ultramachistas. Vivemos em outra época, os conceitos são outros, temos que dizer alguma coisa porque teatro não é só entretenimento.
Então se o intuito é contar uma nova história, não é melhor inventar uma desde o começo?
Até fizemos isso com Estrelas, onde contávamos a história de duas crianças que perderam a mãe… Mas a questão do clássico é que chama a atenção. Então você chama as pessoas para verem o que elas já esperam, como Cinderela, mas apresenta outra coisa. É a Cinderela gordinha, do cabelo ruim, com sotaque nordestino. E as pessoas se identificam, se apaixonam. Até hoje somente uma menina reclamou que a nossa Cinderela não era a que ela tinha no DVD, loira e magra (risos). É o clássico sem ser babaca, sempre funcionou. E o retorno está aqui: estamos no Teatro a Bordo!
Qual é a diferença entre atuar em um teatro fechado e um palco itinerante?
É a mudança da caixa fechada para a caixa aberta. Tivemos uma apresentação em Queimados-RJ para 2.000 pessoas. Não conseguiríamos colocar tanta gente em um teatro… A rua é um processo incrível porque trabalha com a quebra da quarta parede [conceito teatral onde os atores dialogam com o espectador, tornando-o ativo no espetáculo]. Gostamos dessa aproximação com a plateia na rua, porque não existe esta linha entre infantil e adulto, e funciona porque misturamos o clássico universal com as raízes do nosso país. Ao mesmo tempo, lidamos com várias realidades, do Tocantins ao interior de São Paulo, vemos os olhinhos brilhando, pessoas que nunca foram ao teatro, gente que se arruma para nos assistir. Vemos o projeto como um circo moderno, é uma energia muito louca, às vezes nos sentimos a Ivete Sangalo (risos).
E como lidar com a espontaneidade do público da rua? Atrapalha?
O jogo não pode acontecer só entre a gente, a plateia é parte fundamental desse jogo. Durante a peça já entrou cachorro, bêbado, arrancaram nossas perucas, teve mulher que tirou a roupa… Já aconteceram inúmeras coisas. O espetáculo se torna muito mais divertido para eles e para a gente quando há essa intervenção. Quando vemos essas figuras dizemos: “Oba!”, amamos quando aparecem…
Então existe uma relação de dependência com o público, não só do público como espectadores?
A gente depende do retorno porque buscamos o olho no olho. Entendemos que as pessoas têm de sair com alguma coisa dali. Hoje o espectador não é mais passivo, todos são atuantes. E nossos espetáculos têm música ao vivo, então isso torna tudo muito mais dinâmico e único. Muitas vezes as pessoas vêm fazer selfie com a gente, no meio da peça, e paramos, porque entendemos que é isso que torna o acontecimento em algo vivo. A gente vai junto, eles estão dentro do espetáculo.
Vocês já passaram por mais de 40 cidades, no Norte e Sudeste do país. Há diferenças entre elas?
Nas cidades mais afastadas dos grandes centros ainda notamos a ingenuidade, a pureza das pessoas, e isso nos emociona. Teve uma cidade, Buri-SP, próximo a Itapetininga-SP, que paramos com o caminhão e vimos que as pessoas nem imaginavam em quê se transformaria aquele Kinder Ovo, aquela caixinha de surpresas que é o contêiner. O acesso à cultura no nosso país é triste demais. Vemos que as pessoas gostam, o problema é o acesso. O brasileiro não conhece teatro, então não podemos dizer que ele não gosta. Lotamos praças com um projeto de cultura popular, mas quem recebe culturalmente somos nós. A nossa atuação no Teatro a Bordo transforma nosso trabalho. E essas histórias que recolhemos nas viagens viram personagens, influenciam na nossa criação.
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