Diário de Bordo do Caixola [ por Rafaella Martinez Vicentini]
Embora charmosa e com ar típico de cidade do interior, São Roque costuma ser muito frequentada por turistas pela famosa ‘Rota do Vinho’ ou pelas fazendas que esbanjam beleza na área rural. Nosso caixola pegou o caminho inverso e estacionou na Praça da Igreja Matriz, no centro pulsante e comercial da cidade.
Nossa passagem aconteceu em dias atípicos: quinta e sexta-feira, o que foi um alívio para as famílias dos noivos da semana. “Gente, sábado tem casamento, como é que a noiva vai fazer?”, questionou uma senhora ao ver o tamanho da nossa estrutura na porta da principal igreja da cidade. Após ficar sabendo que a nossa competente equipe técnica desmontaria toda aquela armação em apenas algumas horas ao fim das apresentações, a mesma senhorinha retornou feliz com os netos para a oficina de bonecos brincantes.
Foi nessa oficina que conhecemos o Guilherme, o menino caprichoso que pediu três moldes para a confecção dos fantoches: “um para mim e um para cada irmão meu. Eles são gêmeos e gostam muito de brincar”, garantiu o pequeno artista.
Com os trabalhos de quinta encerrados, foi a hora da nossa equipe eternizar em imagem o lindo cenário onde nosso caixola estava inserido. Com tanta troca boa na oficina e olhares carinhosos pelas ruas históricas da cidade, nós só podíamos ter a certeza de que seria uma apresentação para lá de especial.
Não esperávamos, no entanto, que a emoção da sexta-feira fosse começar de forma tão avassaladora ainda durante o cortejo dos palhaços. Em cena, Plínio Augusto na pele do palhaço Néio em uma movimentada viela Doutor Stevaux, preenchida pelo som do acordeão do Hélder Nascimento. Enquanto o tradicional cortejo de chegança avisava a todos sobre a programação do Teatro a Bordo, um senhor de boné azul e olhos tristes se aproximou do palhaço e ensinou o velho truque do elástico. Era para ser um troca por si só bonita, mas ela foi além. Quando Néio foi agradecer pelos ensinamentos o senhor desatou a chorar, dizendo que seu sobrinho havia falecido e que ele estava indo ao velório.
“A vida tem dessas, por isso a gente precisa viver, sorrir e amar como se hoje fosse o nosso último dia. Eu nunca vou esquecer isso que o senhor me ensinou. Continue assim, transmitindo vida apesar da dor”. E após a fala do Plínio, o senhor esboçou um sorriso tímido, abafado. Um sorriso que, como o velho truque do elástico, insistiu em desafiar o dia nebuloso que ele estava vivendo.
o senhor de boné azul
Há dez anos o Teatro a Bordo cruza as estradas do Brasil e nesse tempo coletamos inúmeras histórias por cada pedacinho de chão que estacionamos. Mais do que isso, colecionamos o que de mais valioso há nos quatro cantos desse país: os sentimentos dos muitos brasileiros cujas histórias de vida se mesclaram com a nossa por esse caminho. Naquela fria sexta-feira nosso trabalho de arte foi cumprido da forma mais bonita: tocamos – mesmo que por alguns instantes – a vida do senhor de boné azul e deixamos uma semente de esperança em dias melhores, apesar de tudo.
A noite foi muito fria em São Roque, mas estávamos aquecidos 😉
cai a tarde em São Roque
público especial